A celebração da hipocrisia

21 de Setiembre de 2018

[Por: José Neivaldo de Souza]




Li um pensamento atribuído ao filósofo da linguagem norte-americano Noam Chomsky: “Os hipócritas são aqueles que aplicam aos outros os padrões que se recusam a aceitar para si mesmos”. Ultimamente venho me ocupando com o conceito “hypokrisía, palavra de origem grega para designar a arte de representar um papel ou imitar outra pessoa. Esta ideia, inicialmente do teatro grego, passou a fazer parte do nosso vocabulário a fim de indicar falsidade ou fingimento. Demócrito (século V a.C.) observara que os hipócritas representam bem por palavras o que não vivem. Para ele, o termo trata da contradição entre o discurso e a ação. 

 

Deparo-me diariamente com as contradições! Sem me concentrar na hipocrisia alheia, cuja facilidade para enxergar é bem maior, tenho focado nas minhas próprias imperfeições. Mas, difícil é fugir do diferente que me provoca e me faz questionar sobre minha posição no mundo. O outro é o espelho que reflete minha própria imagem. São Paulo, em sua carta aos Romanos, nos faz pensar sobre a hipocrisia: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço” (Rm 7,19). Muitas vezes, o mal que não quero se manifesta na contradição entre a linguagem e a vida. A fala é espetacular, diz de uma postura sábia que buscamos para nossa vida, mas no cotidiano, nossas ações raramente condizem com o que falamos. 

 

Tenho observado os discursos, em todos níveis, principalmente no que tange ao político e o religioso e recordo o conselho do Sábio Confúcio: “fuja, por algum momento de alguém tomado pela raiva, mas fuja sempre de um hipócrita”. Vou à Bíblia e leio no Primeiro Testamento. As palavras de Isaías são enfáticas: “O Senhor diz: ‘Esse povo se aproxima de mim com a boca e me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim’” (Is 29,13a). Aqui o profeta, no século V a. C., chamava atenção para a contradição entre o dizer e viver. Neste sentido, o perverso pode orar e cantar louvores a Deus, mas a sua relação com Ele não passa de superficialidade. 

 

No Novo Testamento, Jesus ensina que a verdade liberta (Jo 8,32). Mas, que verdade é esta? É a verdade que surge do coração daqueles que amam a vida e trabalha por ela. Assim, é contraditório todo discurso que, apesar de trazer belos e refinados conceitos, apoia e justifica uma cultura de morte. O Mestre foi claro em relação aos escribas e fariseus que produziam, interpretavam e ensinavam a perfeição da lei, mas com práticas escusas e transgressoras em relação a Deus e aos semelhantes: “ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos que estão entrando” (Mt 23,13). 

 

Alguém perguntou sobre o que fazer para ganhar a vida eterna e Jesus disse: “obedeça aos mandamentos”. “Mas, isso eu faço, o que me falta ainda?” disse o jovem. Jesus respondeu: "Se quer a perfeição, vá, venda os seus bens e socorra os pobres, assim terá um tesouro no céu. Depois, venha e siga-me". Conta o evangelho que o rapaz se afastou triste, pois era muito rico (Mt 19-22). O rapaz cumpria a lei por cumprir, mas não colocava em sua vida a regra de ouro do cristianismo: o amor. É o amor que gera vida e não o cumprimento das leis. Nesta perspectiva, podemos entender que até o diabo pode citar a Bíblia, conforme o seu interesse. Alguém poderá, num discurso bonito e ideal sobre a paz, convencer que é através das armas que se conquista a tranquilidade numa sociedade que já vive do belicismo e da violência. Mas, o cristianismo propõe outra verdade.

 

Nesses últimos dias presenciamos discursos de pessoas que sabemos de sua conduta moral, de seu envolvimento no roubo de recursos públicos, de sua atitude preconceituosa e por sua paixão pelas riquezas. Muitas vezes transparecem nessas falas um tom messiânico como se a salvação da sociedade brasileira dependesse de suas palavras. Não nos damos conta disso e precisamos que Deus nos abra os olhos, em primeiro lugar voltados para nós mesmos, para que não caiamos nas armadilhas da hipocrisia e em segundo lugar voltados para os discursos que muitas vezes tentam nos ludibriar com suas contradições que só geram uma cultura de morte. 

 

A música do grupo Legião Urbana, ao convocar a todos para celebrar, nos alerta contra a hipocrisia:   

 

“Vamos celebrar nossa justiça 
A ganância e a difamação 
Vamos celebrar os preconceitos 
O voto dos analfabetos 
Comemorar a água podre 
E todos os impostos 
Queimadas, mentiras 
E sequestros...”

 

 

Imagem: https://www.definicionabc.com/social/hipocresia.php 

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