O princípio violência

02 de Octubre de 2017

Ao longo de breves textos em torno do tema “Cristianismo e violência”, que pretendo publicar semanalmente por este canal de comunicação, convido você a me acompanhar em diversas considerações acerca dos mais variados desdobramentos do princípio cristão da não-violência ativa, sempre num enfoque histórico antes descritivo que interpretativo. A violência tecnológica, econômica, política, social, cultural, religiosa, puritana, machista, racial, sexista, monoteísta, monárquica, eclesiástica, colonialista, patrimonialista, fascista, classista etc. O tema é vasto e tem muitos desdobramentos. Espero que possamos entrar num diálogo fértil. Não pretendo seguir uma ordem na exposição dos temas, de modo que você pode consultar qualquer texto independentemente do outro.




Seis séculos antes de Cristo, o filósofo grego Heráclito erige a violência como princípio fundante da sociedade humana. Baseado no pressuposto de que “tudo flui e nada fica” (o famoso dito grego ‘panta rhei’), ele afirma que o ‘fluxo’ entre opostos faz a história, pois cria uma harmonia sempre provisória e passageira, que há de ser periodicamente restabelecida por um novo confronto entre opostos. Daí a necessidade da guerra. 

 

Heráclito escreve:  “A guerra é mãe de tudo” (a expressão soa bem mais forte em grego: ‘polemos patèr pantôn’). O filósofo martela essa ideia sinistra na mente de seus discípulos. Ele afirma que há de se aceitar a dura lição: a guerra é a rainha soberana do mundo. Ela “faz com que uns se tornem livres e outros escravos”. 

 

Heráclito critica Homero que, em seu poema Ilíada, suspira pelo fim da guerra: “Possa um dia a guerra acabar, tanto entre os deuses como entre os humanos!” (Ilíada, 18, 107).  Heráclito pensa que Homero é um sonhador, ele desconhece as leis do universo, ele não enxerga que, na história, tudo resulta de conflitos. Uns constroem e outros desconstroem. O processo histórico é feito de oposições. O que aparece como estável é na realidade uma ilusória e provisória harmonia entre opostos. Na realidade, a luta faz história, ela produz a justiça.

 

A filosofia sombria de Heráclito encontra ampla confirmação na história. Quem estuda história sabe que –pelo menos desde a revolução neolítica– a espiral guerreira nunca foi interrompida. A história política que aprendemos na escola é uma concatenação de relatos sobre guerras, dinastias, estados e impérios construídos por meio de violência

 

Nada indica que as coisas possam ser diferentes no futuro. Se, em 1945, desmoronou o Império Britânico e despontou o Império americano, hoje assistimos ao surgimento do Império chinês. Os dirigentes sempre seguem o ditado latino: ‘si vis pacem, para bellum’ (se quiser a paz, prepare a guerra). 

 

Os governos, com pouquíssimas exceções, gastam muito dinheiro para manter forças armadas, prontas para entrar em ação, o que constitui a mais clara confirmação da lógica de Heráclito: a história sempre foi e sempre será uma sucessão de procedimentos guerreiros, nas mais diversas circunstâncias e das mais diversas formas. Há de se desviar o olhar das lágrimas das mulheres, do choro das crianças, do desespero de quem perdeu tudo na guerra, igualmente da pobreza que afeta a maioria da humanidade, para fixar o olhar em Sua Eminência a Guerra, a mandona do mundo.  

 

Toda e qualquer civilização tem sua origem na guerra, no ferro e no fogo: as cidades, os países, as famílias, as propriedades, os ‘negócios’, as corporações, a vida social enfim. A guerra cria as civilizações. É verdade, diz Heráclito, que as pessoas sofrem sob a lei da guerra, mas elas têm que se conformar com a lei cósmica, que visa, muitas vezes além de nossa compreensão, criar um equilíbrio que só se alcança por meio da guerra. O ferro governa o mundo, a guerra é um mal necessário. O melhor que se possa fazer é fazer a guerra boa, a “guerra justa”.  Mas o filósofo deixa no meio o que entende por “guerra justa”.

 

A filosofia de Heráclito penetra fundo no cristianismo, como vamos ver nos próximos trabalhos desta série. Os teólogos medievais seguem a doutrina da “guerra justa” e justificam o projeto das Cruzadas contra o Islã. Nos tempos modernos, a filosofia do antigo mestre grego se seculariza, como se pode verificar no escrito ‘De Iure Belli et Pacis’ (‘sobre o Direito de Guerra e Paz), de Hugo Grotius (1625). Através de Tomás Hobbes e John Locke, ela desemboca nas terríveis ideologias do século XX como o nazismo, o estalinismo, o franquismo, o salazarismo, etc., cujos germes, neste início do século XXI, continuam vivas. 

 

Os gritos “guerra nunca mais” são abafados pelo pragmatismo político reinante. O princípio violência é mais atual que nunca.

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