O princípio ‘não-violência ativa’

03 de Noviembre de 2017

[Por: Eduardo Hoornaert]




Numa tarde, no final da década de 1960 (não me lembro mais a data exata), o Bispo Helder Câmara nos chamou ao Palácio das Mangueiras em Recife. Ele desejava nos fazer uma ‘declaração importante’ e quis saber nossa opinião. Éramos uns trinta, entre sacerdotes, leigas e leigos. Aí ele começou dizendo que a Índia tinha a figura de Gandhi e os Estados Unidos a figura de Martin Luther King, ambas configurando movimentos importantes de não-violência ativa, mas que o mundo católico carecia de um amplo movimento profético na mesma linha. Declarou então que pensava em lançar a ‘Pressão Moral Libertadora’, um movimento civil de resistência e esperança. Estávamos em pleno regime militar. 

 

Tive a impressão que não era o único a pensar que nosso bispo estava avaliando mal a importância de seu papel na sociedade brasileira e a achar que comparar-se com Gandhi e Martin Luther King era um exagero. Mas quando, em 1969, o jovem sacerdote Henrique Pereira Neto, colaborador do bispo, foi assassinado pelo regime militar e sobretudo quando, após uma conferência em Paris (1971), na qual ele denunciava abertamente o regime de torturas e mortes vigente no Brasil, Hélder Câmara foi totalmente silenciado pelo regime (‘não se fale mais dele, nem contra nem a favor!’), eu me convenci que ele tinha  realmente a estatura de um profeta de nossos tempos e merecia estar ao lado de Gandhi, Martin Luther King e (mais tarde) Mandela

 

Ainda mais que ele apontou com clareza a dinâmica da violência em si, além de condicionamentos locais e conjunturais. Se Gandhi contestou o colonialismo, Martin Luther King a discriminação dos negros e Mandela o ‘apartheid’, Helder Câmara traçou o desenho mais profundo ao analisar diretamente o princípio violência

 

No livro que lançou na França em 1970, intitulado ‘Spirale de la Violence’ (Desclée de Brouwer, Paris), ele mostra a razão pela qual o princípio violência nos introduz num labirinto do qual não se consegue mais sair. No referido livro, Helder Câmara descreve as três fases da violência, ou seja, a imbricação de três movimentos violentos. 

 

A violência número um se origina na situação de injustiça, pobreza e marginalização, em que grande parte da humanidade vive. É a violência institucionalizada, que provoca a violência número dois, que consiste na revolta contra essa situação desumana. É a violência revoltosa. Essa, por sua vez, desemboca na violência número três, a da repressão da revolta em nome da ‘ordem’. É a violência repressiva

 

A imbricação dessas três fases da violência cria uma espiral sem fim, uma história sem perspectiva além de uma paz precária e temporária a ser seguida por um novo ciclo violento, exatamente na linha da interpretação do filósofo grego Heráclito. 

 

A novidade da interpretação de Helder Câmara está na análise do que realmente significam termos como ‘ordem’ e ‘paz’. Os teólogos escolásticos ensinam que a paz consiste na ‘tranquilidade da ordem’ (tranquilitas ordinis). Nisso, eles repetem a seu modo a definição que os administradores do Império Romano sempre deram à famosa ‘Paz Romana’, que repousava na preposição seguinte: as províncias conquistadas estão ‘em paz’, o intento fundamental do Império consiste em manter a paz e a tarefa principal do Imperador consiste em defender a paz. Ele é o principal defensor da paz (defensor pacis). 

 

Olhando de mais perto não é difícil perceber que tanto a Pax Romana como a Pax Clericalis têm seu fundamento no silêncio das massas populares. A ‘tranquilidade da ordem’ estabelecida é uma expressão enganosa. Helder Câmara conhecia suficientemente a situação da população pobre do Nordeste brasileiro para poder dizer, em repetidas ocasiões, que essa paz reinante é a ‘paz dos túmulos’. Não há lugar mais pacificado que um túmulo. Ali ninguém fala, tudo ‘repousa em paz’. Essa paz é uma desordem instituída e mantida por palavras enganosas.

 

É aqui que se insere o princípio não-violência ativa que, em primeiro lugar, rechaça incondicionalmente o princípio violência e, em segundo lugar, segue não menos incondicionalmente o princípio esperança, que ativa e concretiza

 

Não foi outra a postura de Jesus ao rejeitar incondicionalmente o princípio violência em nome da sensibilidade pelas vítimas. Seu evangelho contém uma afirmação inusitada: a guerra não tem sentido. Nunca, nem antes nem depois de Jesus, uma proposta como aquela foi contemplada com a seriedade que merece (Yoder, J.H., The politics of Jesus, Eerdmans, Grand Rapids, 1972) e, nesse ponto, Jesus aponta, até hoje, uma meta que muitos consideram impossível de ser alcançada. 

 

Muitos pretendem que a proposta da não-violência ativa é ingênua, um ‘pio desejo’ capaz de comover as pessoas, mas que não leva a nada. Eles não percebem que o contrário é verdade: é a guerra que não resolve nada, apenas gera inúmeros sofrimentos e recoloca os poderosos no comando. O ser humano não é como Heráclito o apresenta. Mas acontece que o princípio violência é tão onipresente que as pessoas acabam aceitando seus ditames, já que ele se instalou desde muito no íntimo de nosso ser subconsciente. 

 

 

Ao longo de breves textos em torno do tema ‘cristianismo e violência’, que pretendo publicar semanalmente por este canal de comunicação, convido você a me acompanhar em diversas considerações acerca dos mais variados desdobramentos do princípio cristão da não-violência ativa, sempre num enfoque histórico antes descritivo que interpretativo. A violência tecnológica, econômica, política, social, cultural, religiosa, puritana, machista, racial, sexista, monoteísta, eclesiástica, colonialista, patrimonialista, fascista, classista etc. O tema é vasto e tem muitos desdobramentos. Espero que possamos entrar num diálogo fértil.

Procesar Pago
Compartir

debugger
0
0

CONTACTO

©2017 Amerindia - Todos los derechos reservados.